terça-feira, 25 de dezembro de 2007

É possível?

*João assistia à televisão quando o telefone tocou. “Filho”, chamou a mãe. “Papei Noel mandou um presente de natal para ti”. O garoto parou por um instante e depois sorriu. Eles arrumaram as malas e vieram para Porto Alegre. João recebera um doador e seu presente fora um rim. No hospital, a criança realizou todos os procedimentos com alegria. E nem os doze cortes tiraram daquele rostinho a vontade de ficar bem. O pequeno é forte e sabe o valor que a vida tem.

*Vitória brincava na sala digital. Naquele lugar, os computadores são janelas para o mundo de fora. Ao seu lado, *Rosa escolhia para o assistente voluntário os números para apostar na lotérica. E com esperteza a garota adiantou-se: “Se tu ganhares, eu quero a metade”. É assim que elas passam o tempo e esquecem um pouco os tratamentos e procedimentos médicos, que, por vezes, doem, machucam, incomodam.

Essas pequenas vidas cruzam-se com muitas outras no Hospital da Criança Santo Antônio. São histórias de força e carinho. De amor e enfrentamento. É admirável ver tanta coragem em seres tão novinhos.

Este ano, há menos crianças internadas. “Que bom”, pensei. No entanto, a felicidade durou pouco. Como iria abrandar, consideravelmente, o número de pacientes. Será que eles deixaram de ficar doentes? Será que os acidentes reduziram? Esperança minha. A causa da momentânea alegria não tem nada de encantador. O porquê reside na diminuição de leitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Um lugar que era para ser público torna-se cada vez mais privado. E quem realmente precisa acaba sem assistência.

O que falta? Mais do que um olhar, ajuda. Nem sempre em dinheiro. Talvez, na busca por mais justiça. Cada um contribuindo com o que pode. Sem sonhos, a humanidade não evolui. Quem sabe, pelo menos no Natal, a gente possa ter uma outra visão e, até mesmo, acreditar que algumas coisas podem ser diferentes. Crer que é possível mudar.

Feliz Natal a todos!


* nomes fictícios para preseravar fontes.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Tema de natal

Tinha esquecido a diferença que a música pode fazer na vida de alguém. Esta semana, tive o prazer de esquecer, por alguns minutos, o que acontece no mundo. Parei para ouvir. E, embora o corpo pedisse o conforto da cama e as pálpebras pesassem, esforcei-me para manter os olhos abertos, também tinha muito a ver.

A apresentação foi num salão de festas alugado. No lugar de poltronas majestosas e estofadas, cadeiras de plástico, banquinhos de madeira, cangas e almofadas coloridas eram o espaço que tínhamos para sentar. A simplicidade fazia do ambiente um recinto aconchegante e acolhedor. A acústica não era das melhores, mas não precisou ser. Tudo o que vi e ouvi foi suficiente para lembrar que, às vezes, é preciso parar. Não para pensar na minha vida, mas para estar com aqueles que fazem parte dela. Alguns dos que estavam no “palco” são o que a gente costuma chamar por amigo.

Enquanto eles cantavam, tocavam e encenavam, sentia a canção ecoar dentro de mim. A sensação de liberdade era imensa. Vontade de abrir os braços e esquecer todas as convenções. Acompanhá-los. Vontade de sorrir e chorar e de fazer tudo ao mesmo tempo. Viver.

Nessa hora entendi o poder que o ecoar das notas pode ter sobre um indivíduo. Poder de força, de cura, de escolha. Poder para quem assiste, poder de quem executa. As pessoas se transformam quando acreditam no que fazem. Domínio. Competência. Para uns pode ser um enfrentamento e, junto, um exercício de confiabilidade. Para outros, um desabafo, um expressar de algo que só acontece naquele instante. Como a música é genial. Tantos significados, tantos sentimentos, tantas diferenças.

Ao final da vida, Beethoven não podia mais ouvir. No entanto, a música estava em sua alma. E nem a falta da audição o fez para de compor. Foi preciso serrar as pernas do piano para sentir as vibrações da melodia no assoalho. E assim, ele fez uma de suas mais belas obras.

O natal pode ter começado com a entrada do mês. Todavia, somente a dois dias da data, consigo senti-lo – antes tarde do que nunca. Foi quando parei. Quando olhei em volta de mim. E quando lembrei que o trabalho é importante, mas que a casa, a família e os amigos são alicerces na vida. Não acredito que este ato deva ser feito apenas em dezembro. Mas a gente esquece e, talvez, seja por isso necessário buscá-lo a cada ano. Em livros, cartões e conversas, mas também, na harmonia que existe dentro de cada um de nós.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Contraste sutil

Em frente ao estabelecimento de uma das maiores redes de supermercado da capital, uma outra realidade é sufocada pelo barro, pelo lixo e pela falta de cuidado. Um pequeno universo também conhecido por “Cachorro Sentado”.

Com um cigarro entre os dedos, o presidente da Associação de Moradores, conta que as reclamações da vizinhança vão além da falta de asfalto, das precárias instalações de luz e água encanada, da lista de espera para entrada de crianças na creche Nossa Senhora Aparecida e do posto de saúde que funciona apenas de terça à sexta feira pela tarde. Nos outros dias, não se fica doente.

O maior problema da vila são as drogas, o tráfico, o contrabando. Sofre quem tenta se livrar das mazelas que assolam a região. “Tem baile todo sábado e domingo à noite”, reclama uma moradora. Antes fosse só isso. Meninos que rondam o local e que dormem nos portões por não ter onde ficar aumentam a insegurança dos habitantes, pois, ao invés de inocentes, são os principais responsáveis pela máfia.
E as autoridades? Se não há gente nem para restaurar as casas, quem dirá tomar as rédeas de uma comunidade inteira.

Residências que parecem despencar contrastam com as poucas edificações de tijolo e material. Na morada do presidente, um cheiro de lingüiça ocupa a extensão da sala-cozinha. Na parede, um mapa mundi, um relógio, um retrato de Jesus. O dono da casa pode ter a divisória carregada, pois ela é firme e não corre o risco de cair. Mas o mesmo não acontece com 70% das 277 famílias residentes, em virtude da precariedade e da falta de atenção.

A Cachorro Sentado não é a única. Mas como preferem as autoridades, vamos olhar para o supermercado que, convenhamos, é bem mais arrumado. Pelo menos, enche os olhos com esplendorosa arquitetura.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ingenuidade?

Segundo o dicionário, gentileza significa cortesia, elegância, graça ou favor.
Para os cariocas, a palavra lembra o poeta que, através dos versos, coloriu uma cidade cinzenta. E que com frases indagadoras tinha a gentileza de fazer-nos pensar. Mero obséquio?

A verdade é que pouco há entre o dizer e seus sinônimos, já que, muito além de uma fineza, gentil é um modo de ser.
Um favor feito em troca é interesse. Um benefício espontâneo é gentileza.
Sentada ao final de um delicioso rodízio de pizza, vi algo que, como intecionava o bardo, fez-me refletir. Ao invés de correr para casa ou sentar-se a devorar o que restava, os garçons dividiram-se em dois grupos. Um sentou, o outro serviu. Como não deve ser passar o dia servindo e ao final, inverter os papéis? Gentileza de uns, recompensa de outros.

Acredito ser esta uma ação diária dos atendentes, não voltei para conferir. Particularmente, prefiro crer que assim o é sempre. Ingenuidade?
Em uma canção, Marisa Monte defende merecermos “ler as letras e as palavras de gentileza”. Do poeta? Das pessoas?


Talvez, de quem queira, antes de escrever, ser.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Um Perfil? Uma vida escrita pelas notas da canção

Os dedos são longos e isso não faz a menor diferença. Com a melodia na cabeça, a professora dedilha as teclas do velho piano de madeira alemã. Do instrumento, Noemi faz mais do que sustentar o filho, os pais e a casa. Preencher a vida dos que o cercam é também sua função.

É numa sala pequena (antigo quarto dos pais) que a docente recebe, de segunda à quinta- feira, seus 38 alunos. No restante da semana, ela vai à Taquara, onde ensina canto. Além disso, rege dois corais no instituto Adventista Cruzeiro do Sul. E o domingo não é dia de folga. Descanso, só quando deita a cabeça no travesseiro à noite.

A vontade de tocar vem da infância. Aos três anos de idade, já se apresentava na Igreja. Aos sete, chegou em casa e disse que a “tia do colégio” obrigara a turma a cursar em horário extra-classe. Desconfiados, os pais falaram com a educadora e descobriram que tudo não passava de um desejo da filha.

Ver a alegria e o empenho da criança era o que motivava o pai a pagar os cinco mil réis pelas lições. Mas isso lhe custava uma caminhada diária do serviço até em casa, já que economizar tornara-se a palavra de ordem.

Otimismo, esforço e dedicação são fatores que tornam uma pessoa especial. Após oito cirurgias acompanhadas de uma infecção hospitalar adquirida na época em que ganhou o único filho, Noemi ficou impossibilitada de lecionar nas escolas. Formada em magistério, doutrinava educação artística com aplicação em música. Graças à venda de pães caseiros, comprou um piano e passou a dar aulas debaixo do teto onde morava.

Hoje, aos 47 anos, adianta os planos para o futuro: “Quero fazer vestibular, cursar quatro anos de musicoterapia, um ano de pós, dois de mestrado, aprender espanhol e ir para a Espanha. Nem que eu me forme com 70 anos”. Vontade é o que não falta. E assim, Noemi compõe a vida tocando, cantando e mostrando que tudo é possível para quem luta pelos sonhos.